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há 4 anos

O crime de apropriação indébita do ICMS X A mera inadimplência


Por Gabriel Bueno [1]

A Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, estabelece no artigo 2º, inciso II, que constitui crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”, cuja pena cominada é de detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa.

Especificamente acerca do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, a ausência de seu recolhimento aos cofres públicos pode acarretar crime de apropriação indébita tributária, nos termos da tipificação mencionada acima, a depender de circunstâncias objetiva e subjetiva.

Noutro vértice, convém ressaltar que o sistema jurídico-penal brasileiro não comporta a responsabilização criminal por dívidas, de modo que o simples fato do inadimplemento, qualquer que seja a natureza da obrigação, não tem repercussão na esfera criminal, ocasionando somente a inscrição em dívida ativa da Fazenda Pública Estadual.

Assim sendo, necessário se faz tecer algumas considerações, pontuais e objetivas, buscando esclarecer a diferença entre o crime de apropriação indébita tributária de ICMS, cuja conduta se amolda ao tipo penal previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137, e o mero inadimplemento tributário, o qual não tem repercussão alguma no Direito Penal.

A priori, cumpre destacar que, em se tratando de ICMS, temos as figuras do contribuinte de fato – aquele que suporta o ônus fiscal – e do contribuinte de direito – aquele designado pela lei para pagar o imposto –, de modo que quando o fornecedor de mercadorias ou serviços atribui o valor do ICMS no preço do produto, quem efetivamente arcará com o ônus deste imposto é o adquirente.

Neste sentido, especificamente quanto às mercadorias, a título de exemplo, tem-se que geralmente o atacadista paga ICMS no preço do produto ao adquiri-lo do produtor, o varejista ao adquirir do atacadista e o consumidor ao adquirir do varejista. Na maioria dos casos, todo o encargo da cadeia produtiva é repassado para o consumidor final.

Desta forma, aquele que fornece a mercadoria ou serviço embutindo no preço do produto o valor do ICMS – não possuindo o ônus fiscal –, é identificado como mero depositário do imposto cobrado na operação, tendo como dever o seu recolhimento aos cofres públicos, no prazo legal, após compensado com os valores dos tributos suportados nas operações anteriores.

Com efeito, caso o valor do ICMS seja cobrado do adquirente e não recolhido aos cofres públicos, poderá ser caracterizado o crime de apropriação indébita tributária, não por conta da dívida ou inadimplemento de obrigação tributária, mas sim pelo fato de que, neste caso, o fornecedor incorpora ao seu patrimônio uma quantia que não lhe pertence, oriunda do pagamento efetivado pelo contribuinte de fato – o adquirente – e destinado aos cofres públicos, cujo ônus não recaiu sobre si – contribuinte de direito, o fornecedor –, caracterizando relevância e repercussão na esfera criminal.

Por outro lado, caso o fornecedor de mercadorias ou serviços não atribua no preço do produto o valor do ICMS, o ônus fiscal não recairá ao adquirente e, consequentemente, quanto à esta operação a ausência de pagamento da verba tributária acarretará mera inadimplência.

Portanto, a primeira circunstância analisada para caracterizar o crime de apropriação indébita tributária é de caráter objetivo, consubstanciada na ação de atribuir o valor do imposto no preço do produto, assim, se não estiver presente essa circunstância, a ausência de recolhimento do imposto no prazo legal configura mero inadimplemento tributário.

Contudo, apenas essa circunstância de caráter objetivo não é suficiente para caracterizar o crime em análise, sendo necessária a presença do elemento subjetivo, qual seja: o dolo de apropriação.

Nesta acepção, o artigo 18, parágrafo único, do Código Penal, estabelece que se não houver previsão legal de punição para a conduta culposa (crime culposo), somente haverá a configuração do crime quando a prática for dolosa, ou seja, para que haja repercussão na esfera criminal é necessário que o agente pratique a conduta com a intenção de produzir o resultado (dolo específico) ou, pelo menos, assume o risco de produzi-lo (dolo genérico).

Em relação ao crime de apropriação indébita de ICMS, verifica-se no aparato legislativo que não há previsão para punição de conduta culposa, portanto, para caracterizar o crime é imprescindível que o fornecedor deixe de recolher o imposto com o dolo de apropriação, consequentemente, caso a ausência do recolhimento no prazo legal se dê por qualquer impossibilidade circunstancial, sem a presença do elemento subjetivo (dolo de apropriação), ainda que valor do imposto tenha sido cobrado no preço do produto, será considerado mero inadimplemento.

Destarte, apesar de o dolo de apropriação ser circunstância subjetiva do tipo, a demonstração de sua presença na conduta do fornecedor deve se dar por meio de circunstâncias objetivas, como por exemplo: a existência de débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado, a criação de obstáculos à fiscalização, o inadimplemento prolongado sem a tentativa de regularização dos débitos, a utilização de “laranjas” no quadro societário e o encerramento irregular de suas atividades.

Deste modo, caso a ausência de recolhimento do ICMS, no prazo legal, após atribuído o valor do imposto no preço do produto, esteja cumulada com alguma das circunstâncias objetivas caracterizadoras do dolo de apropriação acima exemplificadas, o fornecedor de mercadorias ou serviços terá incorrido no crime de apropriação indébita de ICMS, do contrário, estaremos diante de mera inadimplência sem repercussão na esfera criminal.

Por fim, necessário registrar que, em todo caso, deverá ser realizada uma interpretação restritiva do tipo para configurar o crime de apropriação indébita de ICMS, como corolário, a conduta somente será criminosa quando se tratar de inadimplência sistemática e contumaz, nos casos em que o empresário utiliza este modus operandi para financiar as suas atividades, locupletar-se ilicitamente ou lesar a concorrência.

Desta feita, pode-se concluir que, em síntese, o fornecedor de mercadorias ou serviços somente incorrerá no crime de apropriação indébita de ICMS se atribuir o valor do imposto no preço do produto e deixar de recolher o tributo no prazo legal, praticando essa conduta de maneira sistemática, contumaz e com o dolo de apropriação, inclusive, conforme a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento RHC nº 163334.

Em todos os demais casos, a ausência de pagamento do ICMS não acarretará crime, tendo em vista que o sistema jurídico-penal brasileiro não comporta responsabilização criminal por dívidas, independentemente da natureza da obrigação.

 

[1] Gabriel é graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e trainee na Romanhol Advogados, na área de direito tributário e empresarial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário. Editora JusPodvm. 14ª Edição. Salvador: 2020;

 

BERGAMINI, Adolpho. Curso de Tributos Indiretos. Volume I: ICMS. 4ª Edição. Revista dos Tribunais. São Paulo: 2020.

 

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 01.03.2021;

 

BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm. Acesso em: 01.03.2021;

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754370634. Acesso em: 01.03.2021;


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