Por Kamilla Batista[1]
No âmbito jurídico, sobretudo no que diz respeito ao Direito Tributário, a prescrição intercorrente é um instituto extremamente suscitado durante o trâmite das execuções fiscais, seja por parte do contribuinte, seja pelo julgador e, em certos casos, até pelo próprio Fisco.
Ocorre que, não obstante a relevância e recorrência do tema em voga, a sua aplicabilidade ainda é controversa, porquanto as interpretações exaradas pelos Tribunais pátrios, nos casos concretos, não são uníssonas, o que enseja em extrema insegurança jurídica aos operadores do direito e, especialmente, àqueles que são demandados pela Fazenda Pública.
Desta feita, por meio do presente artigo será abordada uma situação específica que é por demais recorrente em sede de execuções fiscais, na qual o reconhecimento da incidência da prescrição intercorrente tem sido obstado e dificultado pelos nobres Julgadores, à luz da Súmula 106 do Superior Tribunal de Justiça.
O que ocorre é o seguinte: o Fisco, no exercício de suas prerrogativas, propõe a execução fiscal dentro do prazo prescricional; a seu turno, o magistrado competente recebe a peça vestibular e ordena, no mesmo ato, a citação do executado (contribuinte).
Após o despacho inicial, pelos mais diversos motivos a execução segue inerte por longos anos sem a devida efetivação do ato de citação, e sem qualquer tipo manifestação da Fazenda Pública para fazer cumprir, no feito, a determinação judicial.
Pois bem. Sabe-se que é extremamente contraproducente a permanência de um processo nas dependências do Judiciário sem que haja, por anos a fio, qualquer medida do interessado com vistas a andamentá-lo.
A situação se agrava quando o processo simplesmente é esquecido pelo Fisco, o qual não promove sequer a citação do devedor e/ou a busca pelo patrimônio que garanta a satisfação do crédito público.
Nestes casos, decorrido o prazo quinquenal sem que se verifique qualquer ato tendente a impulsionar o feito, nada mais correto do que o reconhecimento da incidência da prescrição intercorrente e a extinção do processo sem resolução do mérito, ante a culpa concorrente entre o Poder Judiciário, que não promoveu o ato de citação em tempo hábil e a Fazenda Pública, que corriqueiramente propõe inúmeras ações de execução fiscal concomitantemente, perdendo, outrossim, o controle do volume processual e dos atos necessários para se garantir a satisfação do crédito fiscal
Todavia, o atual posicionamento do Judiciário brasileiro sobre a narrativa apresentada não é pacificado, e desemboca em sérios entraves interpretativos, cuja uniformização nacional é medida mais que urgente. E mais, a aplicação desvirtuada da Súmula 106, do STJ, fere de morte o Processo Civilista Brasileiro.
Com efeito, cumpre esclarecer inicialmente que a matéria de prescrição tributária encontra acepção na Constituição Federal de 1988, especificamente no texto do artigo 146, inciso III, alínea b[2], o qual estabelece a chamada reserva de lei complementar, isto é: as normas gerais atinentes ao instituto da prescrição reger-se-ão exclusivamente por lei complementar.
Em razão disso, levando o instituto em comento para a análise no âmbito da execução fiscal, tem-se que o Código Tributário Nacional – recepcionado como lei complementar – preconiza que a prescrição iniciada com a constituição do crédito tributário se interrompe por meio do despacho citatório, proferido nos autos da execução fiscal (artigo 174, parágrafo único, inciso I).[3]
Diante da interrupção da prescrição, o marco inicial para a contagem da prescrição intercorrente, cuja incidência se dá no curso da demanda executiva, pode ser verificado no artigo 40, caput, §2 e §4º[4], da Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/1990), a qual prevê que o magistrado deverá suspender o curso do processo executivo enquanto não localizado o contribuinte devedor ou bens de sua propriedade passíveis de penhora e, caso decorrido o lapso temporal de um ano sem que as diligências tenham se efetivado, deverá ser ordenado o arquivamento do feito.
Destarte, é neste momento processual – decisão de arquivamento – que se verifica, ao menos em tese, o marco inicial da contagem dos cinco anos para incidência da prescrição intercorrente, em favor do contribuinte.
Entretanto, em virtude das inúmeras aplicações e interpretações divergentes do mencionado instituto processual ao longo dos anos, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, por meio do julgamento do Recurso Especial 1.340.553/RS, submetido à Recurso Representativo de Controvérsia, posicionou-se à frente da controvérsia estabelecendo cinco teses interpretativas quanto ao reconhecimento da prescrição intercorrente nos processos de execução fiscal.
Sem se imiscuir no mérito ou definição das teses firmadas no julgamento do recurso retro mencionado, assevera-se, contudo, que uma específica situação não foi considerada pela Corte Superior: aquela em que o despacho que ordena a citação é de fato proferido pelo nobre magistrado, mas o ato citatório ocorre em momento posterior ao prazo quinquenal ou sequer ocorre, ficando evidente a inércia do Fisco em promover e fazer valer a cobrança do crédito fiscal.
Diante desta situação particular, o posicionamento que vem sendo exarado por diversos Tribunais de Justiça é pelo não reconhecimento da prescrição intercorrente a favor do contribuinte, convocando como fundamento o enunciado da Súmula 106 da Corte Superior, que assim verbera: “Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência”.
Isso significa dizer que, além de ser privilegiado com um rito especial para a cobrança de seus créditos, a posição adotada pelo Fisco enquanto exequente também é irrelevante, de modo que a inércia processual deste não configuraria pressuposto hábil para o reconhecimento da prescrição intercorrente, pois seria o equivalente à morosidade do Judiciário, ora respaldada pelo teor da Súmula 106 do STJ, o que, data máxima vênia, não merece prosperar.
Noutra via, ainda que o posicionamento majoritário seja pautado na aplicação desvirtuada do mencionado entendimento sumulado, em alguns tribunais é possível verificar a existência de uma corrente pró-contribuinte, ainda que tímida e velada[5], no sentido de que, ao se averiguar que a paralisação por um largo lapso temporal se deu em razão do posicionamento adotado pelo exequente, que não logrou êxito em promover a citação do devedor ou localizar seus bens, a demora na promoção dos atos processuais não deverá ser atribuída aos mecanismos inerentes à Justiça, afastando-se, assim, a aplicação da Súmula 106 do STJ.
De mais a mais, estando o contribuinte diante da situação fática jurídica ora explanada, é bastante plausível o desenvolvimento de uma tese pela defesa técnica com vistas a alcançar o reconhecimento da prescrição intercorrente e não aplicação da Súmula 106 do Superior Tribunal de Justiça, porquanto a falta de atuação do titular do crédito público em prazo superior ao quinquenal de modo algum pode ser equiparada à morosidade do judiciário, pois, apesar de todas as prerrogativas e privilégios que a Fazenda Pública goza em Juízo, ela sempre será parte e deve observar o princípio do impulso oficial, sob pena de sofrer as consequências processuais de não o fazê-lo.
[1] Advogada, pós-graduanda em Direito Tributário e graduada em Direito pela PUC/GO.
[2] Art. 146. Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
[3] Art. 174. […] Parágrafo único. A prescrição se interrompe: I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal; (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
[4] Art. 40 – O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição. 2º – Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos. 4oSe da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.
[5] TJDFT. Apelação Cível 0002088-91.1990.8.07.0001. 8ª Turma Cível. Relator Robson Teixeira de Freitas. Acórdão de 03.06.2020
TJDFT. Apelação Cível 0013762-46.2002.8.07.0001. 7ª Turma Cível. Relatora Leila Arlanch. Acórdão de 09.09.2020